ASPETAR – Women’s Football
RMD Novembro 2023
Dr. Basil Ribeiro
Medicina Desportiva, V N Gaia
A Aspetar é uma instituição médico-desportiva, sediada no Qatar, que pretende “ser um centro de referência global na medicina desportiva”, com a missão de “assistir os atletas a atingirem o máximo rendimento e o potencial total”. No seu quadro clínico encontram-se muitos médicos de reputação internacional, de várias nacionalidades, residentes ou em regime de consultadoria. É um local onde muitos médicos vão estagiar, colher e partilhar o conhecimento, e por onde muitos médicos
portugueses da medicina desportiva portuguesa já passaram. A propósito do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino, realizado recentemente na Nova Zelândia e na Austrália, a Aspetar publicou uma edição (76 páginas) intitulada Women’s Football.*
São muitos os temas abordados, em várias perspetivas e de diversos autores para além de médicos, pelo que é um documento que merece ser partilhado e lido. O futebol feminino é uma realidade, com crescimento que se poderia considerar ser exponencial, pelo que a temática da mulher futebolista deve ser de abordagem e estudo prioritários. Nesta edição, numa primeira parte (de duas) publicam-se resumos dos vários textos. Os conteúdos foram integralmente transcritos e são da responsabilidade dos respetivos autores. A leitura integral posterior de cada texto é, assim, aconselhada.

FROM OUR GUEST EDITORS
THE (MORE) BEAUTIFUL GAME

“… alguns registos históricos sugerem que as mulheres já jogam futebol desde que este jogo existe (ou algo parecido com ele). O Cujuera um jogo muito provavelmente praticado por homens e por mulheres, possivelmente a nível profissional, tão remotamente quanto a dinastia Han na China, há mais de 2 000 anos. Também se jogavam anualmente jogos entre mulheres na Escócia e em Inglaterra durante os séculos XVIII e XIX e o jogo aumentou de popularidade no início do século XX. O auge da popularidade do futebol feminino foi atingido num jogo em Liverpool, em que atraiu uma multidão de 53 000 espetadores – mais que a final da Taça masculina realizada no mesmo ano. Este record manteve-se por 98 anos. Um ano depois, a English Federation Association (FA) baniu as mulheres de jogarem futebol … referindo: “o jogo de futebol é bastante inadequado para as mulheres e não deve ser estimulado” … no Brasil foi depois considerado ilegal, com o apoio do Presidente da FIFA…. apenas em 1971 a FA levantou finalmente a proibição das mulheres jogarem futebol… demorou mais 20 anos até que a FIFA organizasse o 1º Campeonato do Mundo, na China, em 1991… numa altura em que já tinha havido 14 edições para o futebol masculino.
A seleção nacional de futebol feminino dos Estados Unidos (USNWT) é a que tem mais sucesso no futebol internacional, tendo ganho quatro campeonatos do Mundo da FIFA e quatro medalhas de ouro olímpicas.”
PUSHING FOR A CHANGE IN WOMEN’S SOCCER
FROM THE UNITED STATES SOCCER
– Written by José M. Oliva-Lozano, Celeste Dix, Rick Cost, Frank Wijbenga, George Chiampas, USA
“… Por exemplo, a federação (U.S. Soccer Federation) aprovou um financiamento inicial para um médico, sob a responsabilidade do médico chefe, para apoio à saúde e ao rendimento mental. Este especialista supervisionará as seleções nacionais masculina, feminina e jovens, … e implementará apoio clínico através da liderança, da instrução, do treino, de ferramentas e da tomada de conhecimento da saúde mental… Adicionalmente a U. S. Soccer, nos últimos três anos, formou mais de 300 treinadores em Mental Health First Aid para promover a saúde mental como elemento de ligação à nossa cultura. O objetivo é continuar a construir estas plataformas de instrução através deste novo médico de saúde mental. Finalmente, com as nossas várias equipas qualificadas para o Campeonato do Mundo temos levado a cabo conversas à distância e presenciais sobre a saúde mental e consciência dos eventos para as nossas equipas coletivas.
… o nosso objetivo é ter um apoio global sobre a saúde mental. Isto permitirá que qualquer treinador ou jogador nas seleções nacionais americanas tenha instrução e apoio individual.
Uma área chave que o U. S. Soccer continua a conduzir em relação à saúde e segurança relaciona-se com a área da Lesões da Cabeça e Concussões… limitando o cabeceamento nos jogos dos mais novos em 2015, que é um modelo atualmente adotado em todo o mundo…“

INTERVIEW WITH JILL ELLIS
THE COACH’S PERSPECTIVE
– Interview by Monique Fischer, Switzerland
“…Nós não ganhamos campeonatos do mundo sem a disponibilidade da jogadora e as principais pessoas responsáveis por isso são a nossa unidade de alto rendimento em conjunto com a nossa equipa médica… A elevada velocidade que vemos
no jogo, jogado em intensidade e frequência dos jogos… é imperativo ter uma equipa médica que possa equilibrar as exigências do envolvimento com a saúde da jogadora e tomar decisões sábias e instrutivas. Precisas de ter confiança; confiança e comunicação. Eu fui muito específica em relação aos médicos que eu queria que estivessem comigo na equipa, e eles têm de ter experiência e serem especialistas no fogão, o que significa que eles têm de compreender o campo de jogo. Uma coisa é tomar uma decisão no consultório, mas tomar uma outra decisão no ambiente de elevada pressão à frente de 50 mil pessoas é algo de diferente.
Ellis explica que a jogadora que sofre uma lesão passará por três fases: estar lesionada e estar de fora, regresso ao jogo e estar inteiramente nele. O segredo para passar estas fases está na grande comunicação entre a equipa técnica, a equipa do rendimento e a equipa médica. Tem de haver a noção que se deve fazer o melhor para a atleta.
Ellis acredita que ter competência em fisiologia e biomecânica é um pré-requisito para trabalhar com jogadoras de nível mundial… pois fisicamente as mulheres são fundamentalmente diferentes.
Eu digo à minha equipa: temos de tirar vantagem de cada bocado de informação que nos possa ajudar a melhorar.
O que a América faz muito e bem é a dar a oportunidade… pois o que as miúdas precisam é de uma oportunidade para jogarem num ambiente seguro e alegre…”
LIFELONG FEMALE FOOT- BALL PLAYER HEALTH AND THE IMPORTANCE OF THE ATHLETE VOICE
– Written by Jane Thornton, Canada
“… as jogadoras de futebol têm risco aumentado (duas vezes superior) de lesão do ligamento cruzado anterior (LCA) e osteoartrose precoce no joelho que os seus colegas homens. Os riscos de concussão também são maiores, potencialmente
aumentando a probabilidade de efeitos adversos ao nível cognitivo e neuropsicológico… as taxas de lesão e a saúde da jogadora são influenciadas por processos biológicos e socioculturais… Recentemente o Comité Olímpico Internacional identificou 10 domínios na saúde da atleta para categorizar os problemas de saúde de acordo com o estádio de vida, biológico ou fatores ambientais que afetam as atletas: saúde ginecológica e menstrual, preconceção e reprodução assistida, gravidez e perinatal, pós-parto, menopausa, amamentação, saúde do chão pélvico, saúde da mama, saúde mental de ambiente desportivo.
A lesão grave é uma das razões que leva a atleta a retira-se do desporto (23% a 30% das jogadoras). Metade das jogadoras que deixam o futebol desenvolvem osteoartrose cerca dos 50 anos de idade e mais precocemente se sofreram lesão no joelho… uma das razões é a falta de fortalecimento muscular… devido ao receio de ficarem muito musculadas.
… uma revisão sistemática recente indicou que o rendimento no exercício pode ser ligeiramente diminuído durante o início da fase folicular do ciclo menstrual em comparação com as outras fases… a revisão sistemática mais exaustiva até agora realizada refere que o contracetivo oral poderá minimamente diminuir o rendimento atlético, mas a evidência não é forte para se tirarem conclusões… Entre as atletas olímpicas, a síndrome do ovário poliquístico é a causa mais frequente de disfunção
menstrual, devido ao elevado nível de androgénios circulantes. A menorragia também é comum… as atletas têm taxas superiores de oligo e amenorreia que a população em geral.
A prevalência e associações de depressão e ansiedade nas jogadoras não é conhecida, mas um estudo reportou prevalência similar. A saúde mental pode ser influenciada pela posição onde joga, nível do jogo e da existência de conflitos… maioria dos quais com o treinador.
As jogadoras de futebol de elite têm melhor saúde cardiovascular em comparação com os controlos não treinados.
As atletas referem que as suas envolvências têm grande impacto na sua saúde, particularmente a perceção da quantidade de apoio que elas poderão receber…”
CARDIOVASCULAR ADAPTATIONS AND CARDIAC RISKS IN FEMALE FOOTBALL PLAYERS
AN OUTLINE OF STILL UNCHARTERED TERRITORY
– Written by Carmen Adamuz, Qatar, Silvia Castelletti, Italy, and Guido Pieles Qatar
“… de acordo com um grande estudo recente, a incidência de morte súbita no atleta masculino é de aproximadamente de 6.8/100 000 pessoas/ano, mas a incidência correta nas jogadoras de futebol é desconhecida. Estudos prévios mostraram consistentemente que as atletas têm risco inferior para a morte súbita durante o desporto que os seus colegas homens. De acordo com um estudo, há maior incidência de morte súbita de causa arrítmica em corações estruturalmente normais em mulheres, menor incidência de cardiomiopatias estruturais e, muito importante, menor incidência de morte súbita associada ao exercício. A idade média de morte súbita é semelhante no homem e na mulher…
… apesar de haver poucos estudos, a investigação é clara em que os corações das jogadoras têm adaptações estruturais e elétricas às exigências do futebol diferentes às ocorridas no futebolista… e as adaptações são influenciadas pela idade, raça e
intensidade do treino e / ou duração da carreira, entre outros fatores… As alterações eletrocardiográficas refletem e precedem as alterações morfológicas. Habitualmente, as atletas têm menos alterações quantitativas no eletrocardiograma que os atletas (comuns são intervalo PR e QRS mais curtos e duração do intervalo QT corrigido maior). Apresentam principalmente inversão da onda T, geralmente visíveis em V1 e V2. O padrão de repolarização precoce e a bradicardia sinusal foram os padrões eletrocardiogáficos decorrente do treino mais frequentes na jogadora em relação ao jogador (estudo em futebolistas de elite nos EUA). A presença de ondas T invertidas nas precordiais anteriores (V1-V3) é um achado comum na jogadora de futebol e nas atletas de outros desportos, pelo que as recomendações internacionais não aconselham investigação adicional se a atleta estiver assintomática e não existir história familiar de cardiomiopatia ou de morte súbita. Pelo contrário, a presença de inversão da onda T nas derivações ântero-laterais (V3-V6) e inferiores (II, II, aVF) é menos comum e obriga a investigação posterior.
O aumento equilibrado das dimensões do coração é também observado nas atletas, mas as dimensões absolutas são inferiores às encontradas no atleta masculino. Em contraste com estes, a espessura da parede ventricular esquerda (VE) raramente aumenta para além das dimensões superiores encontradas na população em geral, mas tem sido encontrado aumento da espessura em atletas da raça negra… … e apenas 1% das futebolistas excedem os 12mm da espessura da parede VE, pelo que um valor superior deve levantar a suspeita de possível cardiomiopatia subjacente. A aurícula poderá estar aumentada nas atletas, mas de modo menos pronunciado em relação ao homem. A função sistólica VE é normal nas futebolistas, apresentando valores superiores aos dos futebolistas.
… Entre as futebolistas da África ocidental não foi encontrada doença cardíaca estrutural nas que tinham ondas T invertidas no ECG ou critério de voltagem de hipertrofia VE.
Ao longo dos últimos 15 anos os vários estudos revelaram que jogar futebol a nível profissional, e também recreacional, está associado a adaptações cardiovasculares e múltiplos benefícios para a saúde em mulheres previamente sedentárias de todas as idades.
TEAM PHYSICIAN IN ELITE FEMALE FOOTBALL
– Written by Suzanne A.E. Huurman, Spain
“… uma das evoluções mais visíveis é o número de espetadores nos estádios… no Weuro 2017 nós estávamos superexcitados, pois o jogo esgotou e 28 127 adeptos viram a equipa Orange Lionesses tornarem-se as novas campeãs Europeias. No seguinte, em 2022, a final do Euro em Wembley teve 87 192 pessoas a apoiar a vitória da equipa do Lionesse… e pela primeira vez uma equipa feminina participou num jogo no Camp Nou perante um recorde de 91 553 espetadores…
Como médico de equipa tu cuidas da condição física e mental e dos cuidados médicos das jogadoras de futebol profissionais. És responsável pela organização e funcionamento da equipa médica e és o elemento de contacto e de gestão dos temas médicos… esta parte do trabalho não é diferente em relação às equipas masculinas…
Como fatores de risco não modificáveis (para a lesão) no futebol temos: a posição da jogadora, lesão prévia, idade, sexo, genética, contexto competitivo, interação calçado-solo, queixas específicas no joelho na pré-temporada e especialização desportiva precoce. Por outro lado, há os fatores de risco modificáveis que dão oportunidade para a prevenção e intervenções efetivas. Fatores neuromusculares e a carga são fatores de risco modificáveis…
A atleta de elite atual tipicamente compete em vários torneios e competições internacionais. Tal necessita de viagens internacionais, não apenas para efeito de competição, mas também para estágios. As distâncias de longa distância através de vários fusos horários expõe as viajantes à fadiga da viagem e ao jet lag… Não são apenas os jogos fora de casa e a distância da viagem que são importantes, mas também a distância a percorrer na estrada para estas viagens deve ser considerada…
Recentemente (2021), num estudo realizado apenas em jogadoras de elite foi investigada a incidência de lesões nos membros inferiores e a carga externa (GPS). Não foram encontradas diferenças significativas na carga da jogadora, distância total ou distância a alta velocidade entre as lesionadas e as não lesionadas, independentemente do tipo de relação carga aguda / carga crónica…
Muitas variáveis psicológicas podem influenciar o risco de lesão. Para além do stress relacionado com eventos de vida negativos, variáveis de personalidade e estratégias de lidar desadaptadas, há também o stress relacionado com o desporto, por exemplo, sentir intervalos e repouso insuficientes, músculos duros e tensos e sentir-se vulnerável à lesão… há tendência das jogadoras de elevado nível pontuar mais nos fatores psicológicos, como resistência mental, consciencialização e funções executivas. Têm também menores níveis de ansiedade… o estado de espírito não esteve relacionado com o rendimento…
Na Liga dos Campeões de futebol feminino, na época de 2021-22, 60% das lesões correu em treino, 20% foram graves, o que significa que foram lesões com mais de 28 dias perdidos, e 42% foram lesões musculares. Respetivamente, 45%, 16% e 54% na Liga dos Campeões masculina. A localização das lesões musculares foram: anca/virilha – 25%; coxa – 57% e perna – 11%) … um pouco mais de lesões traumáticas foram encontradas nos jogos femininos: 54% (homens = 58%). 71% foram lesões sem contacto e 7% foram recidivas. A ausência média devido a lesões ocorridas em treino foi de 22 dias e para as do jogo foi de 26 dias (homens; 18 e 21 dias, respetivamente). De um modo geral, na Liga dos Campeões, cada jogadora perdeu 2,4 sessões de treino e 0,5 jogos por mês devido a lesão (1,9 e 0,6, nos homens)…
Grandes desenvolvimentos têm sido feitos na área da prevenção nas últimas décadas… o programa de aquecimento neuromuscular 11+ é um programa eficaz da FIFA… para além deste, há também intervenções eficazes que especificamente se dirigem a lesões comuns, por exemplo, o exercício nórdico para os músculos isquiotibiais ou o programa de fortalecimento dos músculos adutores… uma revisão sistemática e meta-análise recente, com 11 773 jogadoras de futebol… evidência de baixa qualidade, revelou redução global e de lesões do LCA em 27% e 45%, respetivamente…
A evolução do futebol feminino tem sido espetacular e as possibilidades e oportunidades para o futuro próximo são ainda maiores. O céu, para a jogadora de futebol de elite, é o limite!”
Na próxima edição:
Football injury
· Female athlete health in women’s football
· ACL rehabilitation in elite female footballers
· Groin Pain in women’s football
Football podiatry
Embracing women’s football growth at your club
*ASPETAR Sports Medicine Journal. 2023; 12:28.