RESUMOS
Curso de Cardiologia Desportiva
RMD ANO 13 | Nº4 Julho 2022


Resumos
Epidemiologia da morte súbita no atleta
Prof Doutor Hélder Dores
Hospital da Luz Lisboa; Human Performance Department do Sport Lisboa e Benfica; CorSport. Lisboa
A morte súbita (MS) no atleta apresenta vários aspetos controversos, como a sua incidência, variando entre 0,5 a 13 casos/100.000 atletas/ano. As principais limitações no cálculo da incidência decorrem da heterogeneidade das populações analisadas, inconsistência metodológica (análises retrospetivas) e erros na determinação do numerador (número de casos) e do denominador (população em risco). Existem características mais frequentemente associadas a MS, como o género masculino, idade superior a 35 anos, raça negra, elevado nível competitivo e modalidades, como o basquetebol, futebol americano e futebol.
Quanto às causas de MS há também dados inconsistentes, com ampla diferença nas várias análises, justificadas pelas diferentes metodologias de avaliação pré-competitiva usadas e indiferenciação no diagnóstico patológico post-mortem. Em termos globais, as principais causas nos jovens são doenças cardíacas hereditárias (miocardiopatias e doenças arrítmicas primárias) e nos veteranos a doença das artérias coronárias.
Conhecer o contexto em que ocorre a MS é crucial, porque um número significativo ocorre em repouso. Desta forma, a elegibilidade para a prática desportiva na presença de doença cardíaca e eventuais restrições são estabelecidas com maior sustentabilidade. Por exemplo, na miocardiopatia hipertrófica ou síndrome de Brugada de baixo risco podem ser mantidos alguns desportos de nível competitivo, enquanto na miocardiopatia arritmogénica e na taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica, como o exercício constitui o fator precipitante, o desporto competitivo é contraindicado.
A definição de estratégias que visem reduzir os casos de MS em atletas é essencial, incluindo a melhoria da avaliação pré-competitiva e da capacidade de reanimação nos recintos desportivos.

Exercício após enfarte agudo do miocárdio
Dr. Paulo Dinis
Centro de Saúde Militar de Coimbra. Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra
Após um enfarte agudo do miocárdio (EAM) o exercício físico de alta intensidade está contraindicado por um período de pelo menos três meses. Durante esse tempo o atleta deve ser integrado num Programa de Reabilitação Cardíaca com exercício físico ajustado à capacidade atlética prévia, treino progressivo e uma componente psicológica e motivacional capaz de o ajudar nesta fase de maior fragilidade.
Posteriormente, tanto o atleta recreativo como o de competição, devem ser sujeitos a avaliação médica para estratificação do risco cardiovascular. Esta avaliação deve ter em conta o tipo de desporto e intensidade que se pretende praticar, a capacidade e o passado desportivo do atleta e o seu perfil de risco cardiovascular. A prova de esforço máxima é essencial para a exclusão de sintomas e de isquemia.
Existem caraterísticas da doença arterial coronária ou consequência do EAM que são consideradas de alto risco, entre as quais:
a não revascularização completa ou o tipo de lesões presentes nas artérias coronárias (artérias envolvidas, grau de estenose e localização); a disfunção sistólica do ventrículo esquerdo; a presença de isquemia ou arritmias induzidas pelo exercício; e o tempo decorrido após o EAM ou a revascularização (<12 meses).
Atletas assintomáticos e sem caraterísticas de alto risco podem praticar todo o tipo de desporto, tanto recreativo, como de competição.
Podemos ter de ser mais restritivos nos atletas mais idosos e frágeis e naqueles que pretendem praticar desportos extremos – de elevada intensidade e volume (por exemplo: maratonas ou ultra-trails), que deverão ser avaliados caso a caso.
Os atletas com caraterísticas de alto risco podem praticar desportos recreativos sempre abaixo do limiar de isquemia ou deportos de competição da classe IA (skill sports).

A fibrilhação auricular (FA)
Dr. Francisco Moscoso Costa
Hospital de Santa Cruz – CHLO, Hospital da Luz. Lisboa
É a arritmia mais prevalente no ser humano, estimando-se que poderá afetar 1 em cada 4 adultos acima dos 40 anos de idade. A sua fisiopatologia está intimamente relacionada com fatores de risco cardiovasculares, como hipertensão arterial e obesidade, entre outros, e associa-se a maior morbilidade e diminuição de qualidade de vida.
A atividade física regular, pro- movendo o melhor controlo destes fatores de risco, tem um papel importante na prevenção da FA e deve ser recomendada. Contudo, em determinadas circunstâncias, por exemplo desporto de endurance e em particular nos homens de meia-idade, pode verificar-se aumento da incidência desta arritmia.
O tratamento da FA inclui hoje três pilares fundamentais. A proteção para fenómenos cardioembólicos, com anticoagulação oral nos doentes elegíveis, uma adequada estratégia de controlo de ritmo e/ou frequência e, por último, o manejo das comorbilidades.
Em todos estes passos devemos individualizar a abordagem ao doente e ao tipo de atividade física desenvolvida.
Na estratégia de controlo de ritmo, a ablação de FA, tendo como base
o isolamento bilateral das veias pulmonares, é hoje um tratamento atrativo neste grupo de doentes onde os fármacos são menos desejados ou tolerados, conseguindo um controlo de ritmo mais eficaz.
A atividade física não deve à partida ser considerada culpada do aparecimento de FA num atleta e devemos sempre excluir cardiopatia estrutural e comorbilidades que são frequentes. A abordagem da FA no desportista é frequentemente um desafio clínico, contudo, um adequado manejo, permite na maioria dos casos o retorno à prática desportiva em segurança.

Efeitos cardiovasculares da dopagem
Dra. Maria João Sá
Unidade de Traumatologia e Medicina Desportiva do Instituto CUF Porto. Clínica Médica do Exercício do Porto
A patologia cardiovascular está bem identificada como a principal causa de morte súbita de atletas durante o exercício. Muito embora a cardiopatia estrutural e a doença coronária sejam causas frequentes, há uma percentagem de casos, não negligenciável, associada aos efeitos cardiovasculares de algumas substâncias dopantes. Estes efeitos dependem não só de cada substância, mas também da dose, a duração da administração e a associação de substâncias, tão frequente entre atletas.
Os esteroides androgénicos anabolizantes aumentam a transcrição do DNA no músculo esquelético, aumentando a força e causando hipertrofia. O mesmo acontece no músculo cardíaco, pelo que aumenta a espessura da parede ventricular. Outras alterações importantes também estão associadas: dislipidemia, hipertensão arterial, disritmias e eventos tromboembólicos.
O caso das hormonas peptídicas e análogos também não é indiferente à patologia cardiovascular: a hormona de crescimento condiciona hipertrofia, fibrose, deposição de colagénio e necrose do tecido miocárdico. Os beta 2 agonistas, apenas permitidos após autorização de utilização terapêutica, têm um efeito cronotrópico e ionotrópico positivos, vasodilatador das coronárias, efeitos estes que podem condicionar enfarte agudo
do miocárdio, arritmias e até mesmo morte súbita. Os estimulantes, uma das substâncias mais antigas utilizadas como dopagem, podem causar espasmo das artérias coronárias e o seu uso continuado aumenta o risco de hipertensão pulmonar.
Estes são alguns exemplos dos efeitos cardiovasculares de algumas substâncias dopantes que devem ser sempre considerados, não apenas pelo risco de morte súbita associado, mas também pelo risco de patologia cardiovascular crónica.

Ecocardiograma na avaliação précompetitiva do atleta
Dr. António Freitas
Centro de Medicina Desportiva de Lisboa, Hospital Amadora-Sintra.
O rastreio baseado na história clínica, exame objetivo e ECG é, hoje em dia, standard na avaliação pré-competitiva do atleta. Tem limitações bem conhecidas, entre as quais a baixa sensibilidade para algumas patologias relevantes, como a origem anómala das artérias coronárias, a patologia da aorta e algumas cardiopatias congénitas/valvulares minor, em que o treino físico e a competição podem ter um efeito deletério na sua evolução.
O ecocardiograma realizado de forma sistemática, pelo menos uma vez, aumenta muito a capacidade de identificar estas patologias, que podem escapar ao modelo de rastreio convencional. A principal barreira está na exequibilidade e nos custos do ecocardiograma completo, feito por um profissional experiente e familiarizado com a cardiologia desportiva, muito difícil em qualquer sistema de saúde.
Não sendo possível fazê-lo de forma generalizada, tem sido sugerida a estratificação dos atletas em risco, baseada, entre outros, na modalidade desportiva, na intensidade e o tipo de exercício, atletas profissionais ou de alto rendimento, sendo recomendado e prática corrente em algumas organizações desportivas como a FIFA, UEFA, COI, UCI etc.
Para ultrapassar o problema da exequibilidade, têm sido propostos modelos de avaliação baseados em protocolos rápidos, tipo point-of-care, realizados por médicos de medicina desportiva (MD), que mostraram ser exequíveis, com custos controlados, mas, no entanto, com sensibilidade e especificidade não validada. Provavelmente esta será a única forma do incluir sistematicamente a informação ecocardiográfica no rastreio do atleta, treinando os médicos de MD a fazer uma avaliação focada e dirigida para as patologias cardíacas mais relevantes, sendo que a sua eficácia deverá ser testada em estudos multicêntricos, controlados e randomizados.

O atleta com pré-excitação (WPW)
Prof. Doutor Ovídeo Costa
Professor Jubilado da Facukdade de Medicina do Porto
Ao longo das últimas décadas temos assistido à evolução das recomendações para as melhores práticas na gestão do portador de WPW. Novos dados sugeriram o aumento significativo do risco de eventos fatais, em especial nos mais jovens, o que, juntamente com o uso cada vez mais generalizado da ablação como ferramenta de tratamento eficaz e segura, tornaram o WPW uma das indicações mais comuns para o uso do estudo eletrofisiológico (EF).
Assim sendo, as guidelines de 20201 recomendam o EF nos atletas de nível competitivo/profissionais com pré-excitação assintomática para avaliar o risco de paragem cardíaca súbita (PCS) e a ablação da via acessória em atletas de nível competitivo e recreativo com pré-excitação e arritmias documentadas (Classe I).
De notar que em todos os indivíduos portadores de WPW (atletas e indivíduos sedentários) a avaliação se deve iniciar pelo exame clínico, ECG de repouso e ecocardiograma com o objetivo de identificar doença cardíaca estrutural associada (miocardiopatia hipertrófica, anomalia de Ebstein).
A estratificação do risco de morte elétrica deve começar utilizando o registo de Holter e a prova de esforço para identificação da intermitência de condução e o estudo do perfil arrítmico. Recordamos que a prevalência de WPW na população geral é de 1 por mil e a ocorrência de PCS em portadores de WPW é da mesma ordem de grandeza (1 a 4,5 por mil).
Era comum aceitar-se que a pré-excitação intermitente e com desaparecimento abrupto indicava a presença de via acessória incapaz de conduzir ritmos muito rápidos na direção anterógrada, sem risco de resposta ventricular muito rápida durante um episódio de fibrilação auricular (baixo risco de fibrilação ventricular). Existem, no entanto, vários estudos e descrições de casos isolados que relatam excepções: por exemplo, 7% dos 56 casos que sofreram PCS apresentavam pré-excitação intermitente no ECG de repouso.2 Este facto parece poder explicar-se pela maior sensibilidade às catecolaminas das vias acessórias durante a estimulação simpática. Neste contexto, a intermitência, induzida ou não pelo teste de esforço máximo, não deverá ser recomendada como método exclusivo de estratificação do risco nos indivíduos que realizam esforços físicos de elevada intensidade.
BIBLIOGRAFIA
-
Recomendações de 2020 da ESC sobre cardio- logia desportiva e exercício em doentes com doença cardiovascular. Grupo de Trabalho da European Society of Cardiology (ESC) para a cardiologia desportiva e exercício em doentes com doença cardiovascular.
- Ceresnak SR, Dubin AM. Wolff-Parkinson-White syndrome (WPW) and athletes: Darwin at play? J Electrocardiol. 2015; 48(3):356-61.

Atletas com extrassistolia ventricular
Dra. Sílvia Ribeiro
Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães
A extrassistolia ventricular no atleta é, na maior parte dos casos, um achado benigno, sendo controverso se é mais prevalente nos atletas relativamente a uma população da mesma idade não atleta. Quando indicado, o estudo implica a exclusão de patologias que condicionem um risco acrescido de morte súbita.
Algumas caraterísticas da extrassistolia ventricular devem alterar para a possibilidade de doença elétrica, isquémica ou estrutural subjacentes, incluindo: morfologias não comuns, ou seja, morfologias que apontam para focos distintos dos tratos de saída, carga de extrassistolia aumentada, extrassistolia ventricular complexa, origem multifocal e aumento com o exercício físico. Embora a extrassistolia que agrava com o esforço possa traduzir doença cardíaca estrutural ou elétrica, duas considerações devem ser valorizadas: o fenómeno do aumento da extrassistolia com o esforço pode ocorrer na presença de focos automáticos benignos não traduzindo pior prognóstico e tem sido reconhecido que a extrassistolia na recuperação do esforço pode traduzir um risco de eventos.
O estudo inclui a história clínica, o ECG de 12 derivações, o ecocardiograma transtorácico, o Holter de 24h de 12 derivações, para avaliar a morfologia das extrassístoles e a carga diária, e prova de esforço. A tomografia computorizada coronária poderá ser importante na exclusão de doença coronária, caso esta seja equacionada. A ressonância magnética cardíaca assume um papel primordial no estudo do miocárdio e deve ser considerada na extrassistolia com morfologias não comuns, assim como na extrassistolia que aumenta com o esforço. Nos casos menos frequentes, em que se suspeita de doença elétrica hereditária ou miocardiopatia, o teste genético poderá tem um papel esclarecedor.
Quando é realizado o diagnóstico de doença elétrica ou estrutural, o tratamento e a orientação seguem as recomendações das mesmas patologias. No contexto de extrassístoles ventriculares idiopáticas o tratamento é ditado por duas condições: a presença de taquicardiomiopatia ou sintomas. Não havendo uma destas condições o atleta poderá manter a sua atividade com reavaliação periódica em 6-24 meses.

Miocardite em atletas
Dr. Luís Puga
Assistente Hospitalar no Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga; Fellow de imagem cardiovascular avançada no Hospital Álvaro Cunqueiro (Vigo).
O exercício intenso em contexto de inflamação cardíaca ativa, como no caso de miocardite, é um fator de risco para morte súbita cardíaca, de causa arrítmica.
A miocardite é um quadro clínico com apresentação variável, mas que habitualmente cursa com sintomas (dor torácica ou dispneia de esforço) e surge num espaço temporal de 2 semanas após um quadro de infeção viral. Na suspeita deste diagnóstico, deverá ser feito o rastreio com eletrocardiograma de 12 derivações, estudo analítico com marcadores de necrose miocárdica e ecocardiograma. A confirmação diagnóstica carece de ressonância magnética cardíaca que deve cumprir os critérios de Lake Louise.
O diagnóstico de miocardite obriga a uma restrição de exercício entre 3 a 6 meses, que irá depender de vários critérios, como a gravidade da apresentação clínica inicial, a sintomatologia cardiovascular, a função ventricular esquerda e os resultados da ressonância de seguimento que deve ser realizada neste intervalo.
Para o regresso seguro à prática desportiva recomendam-se os seguintes critérios: i) ausência de sintomas cardiovasculares, ii) normalização da função ventricular esquerda, iii) ausência de inflamação ativa (laboratorialmente e na ressonância cardíaca de reavaliação) e iv) ausência de arritmias ao esforço avaliadas numa prova de esforço máxima.
Salienta-se, ainda, que o regresso à prática desportiva deve ser de gradual e durante o período de integração deve ser mantida uma vigilância ativa de sintomas cardiovasculares
e pode ser realizado um holter de 24 horas durante uma sessão de treino.
O grande manancial de investigação que surgiu na sequência da pandemia por COVID-19 demonstrou que a abordagem da miocardite por COVID-19 não deve ser diferente das demais etiologias.
